| 15 Agosto 2015 (Mídia Sem Máscara)
Artigos - Cultura
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Um
direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito da obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é
cuspir bolhas de sabão, é fingimento histérico. Foi por isso que Deus
ditou a Moisés Dez Mandamentos, dez obrigações, não dez direitos.
Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa autofundante e universalmente válida, que portanto não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer considerações externas.
Um
mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as
afirmativas mais débeis e incertas sejam tomadas como princípios
absolutos justamente porque os seus propugnadores não sabem
fundamentá-las nem são capazes de atinar com as conseqüências da sua
aplicação. Despida de toda conexão lógica e de toda ligação com a
realidade da experiência, a idéia solta paira no ar como uma divindade
indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva quanto mais idiota.
Todos
nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como
Churchill, que ela é o pior dos regimes, excetuados todos os outros.
Quando vemos a facilidade com que ela se autodestrói, cedendo lugar a
toda sorte de tiranias, ficamos consternados e imaginamos que isso se
deve à concorrência desleal de concepções antagônicas. Mas essas
concepções não teriam o poder mágico de obscurecer as vantagens óbvias
de viver numa democracia se esta mesma não sofresse de alguma debilidade
intrínseca que a torna vulnerável mesmo aos ataques mais grosseiros e
imbecis.
A
debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de
que, sendo uma excelente idéia prática e nada mais, ela buscou desde o
início escorar-se em fundamentos teóricos falsamente absolutos que a
colocam num estado permanente de autocontradição e têm de ser
diariamente negados, relativizados ou atenuados para que ela possa
continuar funcionando. A democracia vive de expedientes antidemocráticos
e sorrisos amarelos.
O
primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser
humano nasce investido de “direitos inalienáveis”. Um direito, como
demonstrou Simone Weil no seu majestoso livro L’Enracinement, não
é nada senão uma obrigação de alguém mais. Se digo que as crianças têm o
direito à alimentação, significa que alguém tem a obrigação de
alimentá-las. Um direito não é algo que exista em si, é apenas o efeito
da obrigação. Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação
correspondente é cuspir bolhas de sabão, é fingimento histérico. Foi por
isso que Deus ditou a Moisés Dez Mandamentos, dez obrigações, não dez
direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que A Declaração dos Direitos
do Homem nada seria sem uma Declaração dos Deveres, cortaram-lhe a
cabeça. A democracia começou tomando uma conseqüência como princípio e
matando quem percebesse a inversão.
Isso
não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é
que nenhuma sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as
obrigações foram banidas da esfera dos princípios, a incumbência de
defini-las acabou cabendo à legislação comum, donde resultou a criação
desse monstrengo que é o poder legislativo permanente, uma corporação de
centenas de pessoas que passam o tempo todo criando obrigações e
proibições para todas as outras. Milhares, centenas de milhares de
obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer
cérebro humano. Era preciso ser muito sonso para não perceber que por
essa via o Estado logo se tornaria o
mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a
liberdade em nome da qual os direitos foram proclamados.
[Continua]
Publicado no Diário do Comércio.
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